segunda-feira, 7 de março de 2011

A Parábola do Médico de Campanha e o Trilema de Münchhausen

Minha parábola zen budista preferida é a do médico de campanha, a qual gostaria de partilhar convosco.


Havia um médico de campanha que acompanhava um pelotão. Parecia-lhe que sempre que ele salvava a vida de um soldado, este perecia tão logo voltasse ao combate.

Isto lhe causou uma profunda crise existencial. Afinal, de que valia todo seu trabalho e esforço em salvar vidas se estas duravam tão pouco?

Assim, o médico de campanha exilou-se para estudar com um mestre zen budista. Após meses de estudo ele teve uma iluminação e retomou seu trabalho. Desde então, caso alguém lhe perguntasse o porque dele fazer o que faz apesar de tudo, ele simplesmente respondia: Porque sou um médico de campanha.

Identifico-me bastante com esta parábola. Nunca tive uma crise existencial muito profunda acerca da minha vocação, mas fico desconcertado quando me perguntam porque eu cursei filosofia. Eu simplesmente sou um filósofo, oras.

Façamos justiça aos meus inqueridores. Pessoas tem as mais diversas razões para seguir uma carreira. Há aqueles que dizem amar o que sua carreira representa, como médicos que almejam salvar vidas, advogados que desejam fazer justiça, cientistas que visam contribuir para nosso entendimento do mundo e talvez descobrir soluções para nossos maiores problemas etc. Há também aqueles que dizem seguir uma carreira por suas perspectivas financeiras ou porque foram obrigados pelos pais.

Dado isto, permitam-me lhes falar sobre o trilema de Münchhausen. Se todas nossas alegações devem ser justificadas, o que se faz por meio de outras alegações, então cairemos em uma das seguintes situações:

  1. Caímos numa regressão infinita de alegações, cada uma justificada pela seguinte.

  2. Acabamos nos repetindo, caindo em um raciocínio circular.

  3. Chegamos a alguma alegação que é aceita dogmaticamente ou axiomaticamente, isto é, sem justificação.

Dado isto, vejamos em que qual das situações eu cairia se fosse justificar a alegação de que eu sou um filósofo. Para efeito deste exercício, considerarei que caí na situação #1 caso eu fique cansado de dar justificações, na situação #2 no caso de me repetir e na situação #3 no caso de eu não for capaz de dar mais justificações.

Pois bem, por que eu sou um filósofo? Vejamos... eu amo filosofia. Tenho um enorme prazer em discutir o assunto, assim como ler e escrever sobre ele.

Oras, mas ter prazer em discutir, ler e escrever filosofia é justamente a definição de um filósofo. O que eu fiz é equivalente a dizer que sou filósofo porque sou filósofo.

Evidentemente caí na situação #2 logo na primeira justificativa. No futuro, caso seja-me solicitado justificar a afirmação de que eu seja um filósofo, poupar-me-ei do trabalho e cairei logo na situação #3, sem dar uma justificação sequer.


Autor: Dante Cardoso Pinto de Almeida



12 comentários:

  1. A definicao de filosofia é também um dos axiomas?
    Afinal, se voce se poupa do trabalho de dar justificacoes, o que continua sendo a sua definicao do fazer filosófico?

    Se a afirmacao - eu sou um filosofo - é correta, entao vc sabe o que é filosofia, assim como um medico de campanha sabe o que é cuidar dos soldados feridos. Mas, se esse raciocio faz vc abdicar das justificacoes pra explicar o que vc é, logo, procurar justificacoes nao pertence ao fazer filosófico.
    Se permite, pergunto ao filosofo e amante da filosofia. Em que consiste isso que vc é e que vc ama?

    Guarda segredo nao, conta aí, estou curioso!

    liebe Grüße aus Berlin

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  2. Putz!! Então este texto se remete á 'Acabamos nos repetindo, caindo em um raciocínio circular.'

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  3. Caro Lucas,

    [A definicao de filosofia é também um dos axiomas?]

    Lucas, definições são convenções linguísticas. Elas não precisam ser justificadas. Elas são aceitas ou não pelas pessoas que empregam o definiendum.

    [se voce se poupa do trabalho de dar justificacoes]

    Em nenhum momento eu disse que não precisamos justificar coisa alguma. Eu disse que (no geral) não é preciso justificar por que realizamos esta ou aquela atividade.

    Claro que sempre podemos elaborar uma apologia da atividade em questão. Mas, uma vez que o mesmo pode ser feito em relação às demais, então por que preterí-las?

    Só resta dizer que você é mais sensível à apologia da atividade que você realiza. E como justificar isto? Explicações psicológicas ou neurológicas? É isto o que as pessoas que indagam acerca da sua atividade têm em mente, discutir psicologia ou neurologia?

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  4. Algo continua obscuro, Dante. Em que se consiste essa atividade que se realiza? Um médido de campanha cuida de soldados, o soldado vem com um tiro na perna, ele conserta a perna e manda ele pra morrer direito no campo de batalha. Essa é atividade de um médico de campanha, nao precisamos chamar aqui um médico de campanha para discutir essa definicao.

    Definicao é convencao linguistica, ponto pacifico. Mas, precisamos chamar um linguista pra esclarecer qual é essa atividade mágica da filosofia? Um psicológo, um neurologista? Acredito que eles tem tanto a contribuir com o assunto quanto um médico de campanha.

    Vc afirma que é um filósofo, entao vc entendeu, tal como o medico de campanha, em que consiste essa atividade de ser filósofo, e te pergunto o que é isso.

    Nao sao perguntas simples, mas a atividade filosófica também nao é tema pacifico.

    abracos!

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  5. Se me permitem um comentário, responder a pergunta "o que é filosofia" ou "o que faz um filósofo" é, por si só, algo circular a alguém que se define como um filósofo. Se perguntamos a um matemático "o que é matemática", responder a tal pergunta não é fazer matemática. O mesmo para um físico, um médico... porém, se um "filósofo" responde "o que é filosofia", a busca por tal resposta (ou definição) já pressupõe a mesma. Responder a pergunta já é "fazer" filosofia... e não respondê-la, neste sentido, também.
    Abraços

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  6. Lucas e Rafael,

    eu concordo em absoluto convosco. A discussão sobre o escopo e método da filosofia não é ponto pacífico, mas uma questão filosófica profunda.

    Contudo, não é isto o que estou discutindo neste texto. Meu ponto aqui é que nenhuma resposta além de "eu sou o que sou" é satisfatória para a questão "por que faço o que faço?", quando esta tem uma conotação de dilema existencial.

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  7. Não vejo a questão como obscura pois não relaciono objetividade à uma "ausência de sujeito".

    A pergunta "O que é esta filosofia que eu faço?" pressupõe um agente com um fazer "filosófico". Mas nesse exato ponto ela torna-se tão circular quanto a verdade tarskiana: O sentido de filosofia colocado aqui é exatamente aquilo que o elaborador da pergunta tem em mente naquele momento.

    Tenho a impressão, como o Dante, que mesmo na ausência de uma convenção a respeito do sentido da palavra filosofia (ou de médico de campanha) o agente em questão ainda teria elementos para construir uma definição pessoal do seu fazer.

    O fato de existir uma convenção linguística apenas torna mais evidente o problema existencial, pois o agente pode comparar sua vivência com a convenção partilhada entre seus pares.

    Contudo, neste ponto, não vejo necessidade de privilegiar uma definição de filosofia em detrimento de todas as outras, uma vez que (agora me lembro de Schopenhauer recomendando o estudo de línguas) quantas mais eu tiver, maior a consciência que terei e minha experiência pessoal.

    Por isso, filosofia é, de fato, aquilo que eu faço toda vez que filosofo.

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  8. Dante, entendo o que te move, pode ir até além e ampliar a conotacao existencial para uma conotacao instituicional, o que torna legitimo o fazer filosofico em uma instituicao publica? Realmente acha que atras da aparente profundidade dessa questao escondam-se muitas práticas que estao onde de ser filosofia, mas que mesmo assim tomam como tal, ou acha que todos com diploma de filosofia e que pesquisam na area sao filosofos? Compreendo sua angústia, mas acho que o buraco ainda é mais fundo.

    O que realmente me incomodou no seu texto é vc usar um texto zen-budismo. Recortar ele de um contexto cultural essencialmente diferente do nosso e usar como exemplo dentro de um esquema de pensamento da filosofia ocidental nao é muito correto.

    Aí vc alimenta ainda mais todos os lugares comuns que desemboca em definir a filosofia, nao deixam de ser absurdos, como responder que é igualmente válido na filosofia responder ou nao responder o que é filosofia ou condenar-se a um excentrico tipo de solipsismo onde se afirma em primeira pessoa que filosofia é aquilo que se faz quando se filosofa.

    Nao é só um dilema existencial, mas institucional e moral, ou?

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  9. Lucas,

    [Realmente acha que atras da aparente profundidade dessa questao escondam-se muitas práticas que estao onde de ser filosofia, mas que mesmo assim tomam como tal, ou acha que todos com diploma de filosofia e que pesquisam na area sao filosofos?]

    De fato, um diploma não torna ninguém filósofo. Não é difícil encontrar fora dos departamentos de filosofia gente com mais sensibilidade filosófica do que muita gente dentro dos mesmo. O que não significa também que qualquer pessoa que aborde filosoficamente algum assunto seja filósofo, assim como ninguém é matemático por efetuar algumas contas.

    [O que realmente me incomodou no seu texto é vc usar um texto zen-budismo. Recortar ele de um contexto cultural essencialmente diferente do nosso e usar como exemplo dentro de um esquema de pensamento da filosofia ocidental nao é muito correto.]

    Não nego que alguma exegese seja positiva ao analisar alguma corrente de pensamento, ainda mais uma provinda de uma cultura tão distinta da nossa.
    Contudo, diferenças culturais não pode servir de pretexto para desqualificar um paralelo tão despretencioso quanto o abordado no meu texto.
    Este mito do contexto é um tanto quanto pernicioso. Afinal de contas, não são os pensadores de outras culturas seres humanos como nós, com o mesmo sistema nervoso que nós, lidando com questões semelhantes às nossas?

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  10. Este comentário foi removido pelo autor.

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  11. Diferencas culturais tem de servir de pretexto pra um diálogo cultural produzido. Uma outra cultura lida com questoes da mesma forma que a nossa? Nao. A cultura ocidental nao tem ideia do que é fazer perguntas pro Outro, alias, quase nunca existe um outro (realmente Outro) em nosso modo de pensar. Mesmo um pergunta, consideramos que ela só é formulada corretamente quando já contém sua propria resposta (vide o que é filosofia?). Nunca houve outro no diálogo, sempre o dialogo com o mesmo.

    Nao acredito que seja possivel fazer filosofia, ser filosofo, fora da academia. Mas, cada vez mais, praticas anti-filosoficas sao institucionalizadas, principalmente em nossos departamentos.

    Vc pode citar um texto zen-budista dessa forma, como blogueiro, como artista, mas nao enquanto filósofo. Uma das caracteristicas de ser filósofo é ser conquesente com sua afirmacoes e ser capaz de justifica-las, nao?

    Mas, isto é só uma forma de te mandar um abraco! sei qual é o objetivo e o alcance do seu texto e concordo em parte, apesar de parecer querer dar uma rasteira.

    Responder o que é filosofia continua sendo uma tarefa importante e que só pode ser feita por filósofos, se torna mais importante ainda se nos preparar para um dialogo com o outro, afinal, a cultura ocidental está acostumada mesmo só a dialogar com si mesma (o resto ela destroi e domina, tambem nas areas do pensamento)

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  12. Lucas, suas observações são válidas. Tê-las-ei em mente no futuro.

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